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2003-09-24

 
Gulbenkian Descobre Que Amadeo de Souza-Cardoso Repintava Muitas Telas
Por ISABEL SALEMA
Quarta-feira, 24 de Setembro de 2003

Amadeo de Souza-Cardoso, considerado o grande pioneiro da pintura portuguesa do século XX, foi um intenso reutilizador de telas, voltando muitas vezes a repintar os quadros, algumas vezes anos depois.

Este é o resultado surpreendente de uma investigação do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, onde se descobriu que em 25 das 90 telas de Amadeo já analisadas havia outra pintura por debaixo da original. "Das 90 pinturas estudadas cerca de 25 têm pintura subjacente. São bastantes", diz Vanda Coelho, a técnica de conservação e restauro que, nas caves da fundação, em Lisboa, instalou um laboratório improvisado para analisar as obras. Até morrer, com 31 anos, Amadeo fez cerca de 200 pinturas, sendo hoje a Gulbenkian proprietária de 60 quadros.

Na última "newsletter" da Gulbenkian, uma edição do serviço de comunicação da fundação, a equipa revelava que tinha encontrado dez obras com pintura subjacente, mas o número não pára de crescer. Helena de Freitas, a coordenadora da equipa da Gulbenkian, fala-nos destes resultados com alguma reserva, porque o estudo está ainda a decorrer e as conclusões finais só serão divulgadas em 2006. É nessa altura que será publicado o catálogo "raisonné" de Amadeo de Souza-Cardoso, que pretende ser a edição de referência do pintor e é o objectivo final desta investigação da Gulbenkian. Mas, para já, tudo parece indicar que este método de trabalho em que as telas são assiduamente repintadas teve influência na expressão plástica do pintor. Exemplos de outros pintores em Portugal não se conhecem, uma vez que não estão estudados, diz Helena de Freitas.

Duas pinturas escondidas em "Os Galgos"

Nalguns casos, como em "Os Galgos", cuja data provável é 1911, há mesmo duas pinturas subjacentes diferentes, autónomas e acabadas, que se tornaram visíveis quando a radiografia e a reflectografia de infravermelhos foram utilizadas para estudar a pintura.

A primeira composição é uma paisagem que foi pintada com a tela na posição horizontal: vêem-se dois cavalos, uma charrete e ainda a definição da linha do horizonte. "É datável de 1908-09", diz Helena de Freitas, "o que corresponde às primeiras experiências de pintura do artista, quase sempre paisagens, ainda presas a um vocabulário mais 'académico'". Depois, Amadeo fez uma segunda pintura, "de uma senhora muito bonita, muito modiglianesca", continua a coordenadora, referindo-se à influência do pintor e escultor italiano Amedeo Modigliani, que o artista português conheceu em Paris em 1911 e de quem se tornou amigo.

É este trabalho feito até agora com "Os Galgos" que será mostrado numa exposição no CAM, marcada para os finais de Janeiro mas ainda sem data definitiva. "Vamos mostrar toda a informação visual e teórica que encontrámos até ao momento. Vamos desvendar um pouco o catálogo 'raisonné'. Os avanços na biografia de Amadeo também são significativos, mas os dados estão sob reserva", explica a coordenadora do projecto.

No laboratório da cave, estão vários Amadeos históricos, entre os quais vários das suas fases mais próximas do abstraccionismo, onde também foram encontradas pinturas subjacentes. Alguns quadros precisam de ser analisados rapidamente, porque pertencem a coleccionadores particulares e o empréstimo é feito por pouco tempo. Mas a colaboração dos coleccionadores tem sido grande, porque a inclusão de uma obra no catálogo "raisonné" funciona como uma prova de autenticidade. A Gulbenkian tem 200 obras de Amadeo, entre pintura, aguarela, desenho e caricatura, mas o universo total da sua obra chega aos 500.

200 obras novas

A equipa já localizou 200 obras novas, em relação ao catálogo da exposição comemorativa do centenário do nascimento de Amadeo de Souza-Cardoso feita pela Gulbenkian em 1987, entre inéditos e trabalhos cuja localização exacta era desconhecida. Até agora foram todos localizados em Portugal, como o desenho a grafite, da colecção António Natal Monteiro, recém descoberto, mas Helena de Freitas sublinha que as pinturas subjacentes reveladas alargam o corpo pictórico conhecido do pintor, mesmo que estejam ocultas.

Para a equipa, não é clara a razão por que Amadeo reutilizava as telas ou escondia tantas pinturas. Porque era pobre? "Não, ele pobre não era", diz Helena de Freitas, mas ainda é cedo para perceber se foi por falta de dinheiro ou orientação estética. "Pode ter querido ocultar deliberadamente as pinturas", diz Vanda Coelho.

Se em termos estéticos se pode dizer que Amadeo experimentou tudo ou quase tudo o que eram os movimentos do seu tempo - cubismo, futurismo, expressionismo, abstraccionismo e mesmo algumas soluções dadaístas (por intuição e antecipadamente) -, as pinturas subjacentes mostram um entusiasmo semelhante em experimentar os materiais e um grande à-vontade com o acto de pintar. "Não há uma regra. Mas, muitas vezes, ele segue algumas das formas das composições subjacentes para criar uma segunda composição", diz Vanda Coelho. Outras vezes, como numa das várias pinturas que fez com uma guitarra amarela, o verde da pintura subjacente é deixado à vista no quadro final. "Ele é um reutilizador. E essa reutilização não lhe é indiferente. Senão ele isolava a camada subjacente, com branco, e só numa das obras estudadas é que fez isso", explica a técnica de conservação e restauro, pegando numa pequena tela abstracta (1913).

Helena de Freitas concorda. Esta descoberta "poderá ser um factor de interpretação do trabalho de Amadeo, na medida em que ele aproveita o que tem para reconstruir". Nas últimas telas, como "Coty" (1917), a colagem invade a pintura (ganchos, bocados de espelhos partido, areias...), um acumular de materiais, "onde a introdução de tanta informação acaba por desfazer o sentido narrativo inerente à própria pintura". Um jogo de camadas que, afinal, sempre parece ter feito parte do seu método de trabalho. "Estou desejosa de chegar a estas pinturas finais para ver como isto funciona", termina a responsável pela equipa.
in Jornal Público de 24/09/2003

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bom comeco
 
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