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2003-12-18

 
A BICA

Tomo-a, assim, sofregamente, acotovelando uma multidão. O milagre das manhãs, que me acorda para a vida. Retemperando as noites de insónia, povoada de fantasmas teimosos. Os mesmos que encontro agarrados às mesas, debruçados sobre o balcão do Café do meu bairro. Num vai vem alucinado. Não sei se da pressa para ir para o trabalho, se da fuga à realidade. Mas estão sempre com pressa, sempre em movimento, sempre secos e calados.
A máquina do Café não pára. Vai derramando doses e doses de cafeína. Dou comigo a rir, ao estabelecer, sem qualquer paralelismo, a comparação com uma casa de “chuto” legalizada. Ao lado, um sujeito de casaco comprido, castanho claro, olha para mim enfastiado. Tem o nó da gravata bordeou mal feito e desalinhado, sobre uma camisa cor-de-rosa com riscas brancas e um colete azul celeste. Que mistura mais esquisita... Mas o semblante do meu companheiro de ocasião está solene, carregado, sinal de importância e de reprovação do meu riso extemporâneo. Olhei-o nos olhos. Raiados de sangue, fixavam-me como uma ave de mau agouro. Fiquei sem saber, nos poucos segundos em que tentámos perscrutar mutuamente, o que pretendíamos descobrir. Mas senti que aquele homem padecia de uma profunda amargura pela vida.
Uma mendiga esperava à porta do Café. Encharcada pela chuva que caía, repetia uma cantilena, estudada ou apenas necessária à sobrevivência. Dei-lhe um euro, com o mesmo gesto mecânico com que pagara a bica. Mantive o guarda-chuva fechado. Precisava de refrescar as ideias, de me sentir vivo. De embrenhar-me no nevoeiro dos meus próprios fantasmas.

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