2003-12-12
Um Cristo Rei no nariz
Era uma daquelas tardes chuvosas de fim de semana, mais uma que São Pedro fez questão de nos lembrar que em casa também se está bem. Resolvi então arrumar um monte de papeis que tinha amontoados à anos no fundo de um armário. Estava nesta árdua tarefa quando reparei num molhinho de papéis, muito bem ordenado e preso com uma fita vermelha que terminava num laço muito mal feito. Eram desenhos meus, dos tempos de escola. Um a um fi-los desfilar diante dos olhos. Recordações... Recordações que foram interrompidas quando vi aquele desenho - uma mão pousada em cima de uma almofada com o pulso a terminar numa pequena cobra. Sempre me perguntaram se estava zangada quando o fiz. Não, não estava, respondia eu, sempre a encobrir que não tinha tido paciência para fazer o pulso, uma parte chata de desenhar e na minha opinião, pouco estética. E de repente, não sei porquê, talvez fosse da cobra, irra, lembrei-me do meu professor de desenho do 1º ano. Uma figura pequena, da cabeleira farta, rosto minúsculo todo amassado de rugas, uns óculos de armação de negro corvo e mal humorado às segundas feiras quando o seu Sporting perdia. Quase sempre de pé nas aulas, passeava entre nós como um general de peito erguido, a esticar o metro e meio que tinha. Até que um dia, o senhor resolveu embirrar comigo. Não gosto da personalidade dela, disse a um colega seu, mas tu nem a conheces, pois não e não gosto! Estava feita! Foi um ano escolar de verdadeiro suplicio. Eu desenhava e o homem desdenhava. Lembro-me perfeitamente do dia em que apresentamos o trabalho “A Vista Para Além Tejo”, onde um colega meu tinha um Cristo Rei a despencar do pedestal, a linha do horizonte inclinada e a correr sofregamente para nascente, uns riscos violentos a fazerem de edifícios (havia até zonas da folha rasgadas), e a ponte sobre o Tejo a mergulhar no rio. Naif, é um naif, disse e sorriu aquela besta malcriada do professor, deliciado com tamanha obra de arte. É claro que os meus desenhos estavam péssimos, não eram naifs nem nada que se parecesse.
O quanto os professores nos podem mudar! O que é certo, é que depois deste e muitos episódios e finda a escola, nunca mais consegui desenhar, nunca mais desenhei e ganhei pavor à folha branca. Ainda hoje alimento a secreta esperança de encontrar o Sr. Professor e de ter a oportunidade de lhe mostrar que as pessoas valem por aquilo que são, quer gostemos delas ou não. E quem sabe, a secreta esperança de também lhe poder enfiar um Cristo Rei no nariz, para ele ficar igualzinho ao desenho do meu colega: assim, naif!
Era uma daquelas tardes chuvosas de fim de semana, mais uma que São Pedro fez questão de nos lembrar que em casa também se está bem. Resolvi então arrumar um monte de papeis que tinha amontoados à anos no fundo de um armário. Estava nesta árdua tarefa quando reparei num molhinho de papéis, muito bem ordenado e preso com uma fita vermelha que terminava num laço muito mal feito. Eram desenhos meus, dos tempos de escola. Um a um fi-los desfilar diante dos olhos. Recordações... Recordações que foram interrompidas quando vi aquele desenho - uma mão pousada em cima de uma almofada com o pulso a terminar numa pequena cobra. Sempre me perguntaram se estava zangada quando o fiz. Não, não estava, respondia eu, sempre a encobrir que não tinha tido paciência para fazer o pulso, uma parte chata de desenhar e na minha opinião, pouco estética. E de repente, não sei porquê, talvez fosse da cobra, irra, lembrei-me do meu professor de desenho do 1º ano. Uma figura pequena, da cabeleira farta, rosto minúsculo todo amassado de rugas, uns óculos de armação de negro corvo e mal humorado às segundas feiras quando o seu Sporting perdia. Quase sempre de pé nas aulas, passeava entre nós como um general de peito erguido, a esticar o metro e meio que tinha. Até que um dia, o senhor resolveu embirrar comigo. Não gosto da personalidade dela, disse a um colega seu, mas tu nem a conheces, pois não e não gosto! Estava feita! Foi um ano escolar de verdadeiro suplicio. Eu desenhava e o homem desdenhava. Lembro-me perfeitamente do dia em que apresentamos o trabalho “A Vista Para Além Tejo”, onde um colega meu tinha um Cristo Rei a despencar do pedestal, a linha do horizonte inclinada e a correr sofregamente para nascente, uns riscos violentos a fazerem de edifícios (havia até zonas da folha rasgadas), e a ponte sobre o Tejo a mergulhar no rio. Naif, é um naif, disse e sorriu aquela besta malcriada do professor, deliciado com tamanha obra de arte. É claro que os meus desenhos estavam péssimos, não eram naifs nem nada que se parecesse.
O quanto os professores nos podem mudar! O que é certo, é que depois deste e muitos episódios e finda a escola, nunca mais consegui desenhar, nunca mais desenhei e ganhei pavor à folha branca. Ainda hoje alimento a secreta esperança de encontrar o Sr. Professor e de ter a oportunidade de lhe mostrar que as pessoas valem por aquilo que são, quer gostemos delas ou não. E quem sabe, a secreta esperança de também lhe poder enfiar um Cristo Rei no nariz, para ele ficar igualzinho ao desenho do meu colega: assim, naif!