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2004-01-29

 
E o Blog Don Vivo, também participou na nossa 5ª Temática, Obrigada!

O tema é aliciante, mas vago: o mar? Qual mar? O dos dias santos, com 15 nós de vento pela alheta, ou o dos dias normais, 30 nós em plena proa? (Sim, porque quem anda à vela no mar sabe que uma das verdades imutáveis é “ou não há vento ou ele está contra”).

Nunca percebi bem, e garanto que já passei muitas horas, muitos dias, a tentar perceber, o que nos faz gostar do mar. O aforismo diz “um dia bom vale dez dos maus”; se ao menos a proporção fosse essa... Mas não é, nunca é. As descrições de dias maus são inúmeras, e incluem invariavelmente os termos “muito vento”, “pouco vento”, “bolina”, “popa arrasada”, “falta de visibilidade”, “sol estarrecedor”, “frio”, “calor impossível”, “nevoeiro”, “maré contra”, “um cargueiro apontado a nós a --- (segue-se um número, normalmente pequeno) metros”.

Já o vocabulário para os dias bons é escasso: limita-se aos sinónimos de “paz”, “harmonia”, “calma”. Deve ser por isso que a proporção nem sequer é de um para dez. Mas a verdade é que, chegado por exemplo a Las Palmas às quatro da manhã após 7 dias “maus”, quando às 08h30 nos disseram que tínhamos de ir para Tenerife não me custou nada largar, nada. Fomos para Santa Cruz e vi que, ao contrário do que comumente se pretende, o bom tem muito mais força do que o mau. Ou, chegados à Martinique após uma travessia de três semanas que incluiu entre outras coisas um rasto de ciclone e uma ferragem de estai a partir, a tripulação em peso me disse “se fôr preciso sair amanhã, saímos”.

No fundo talvez seja porque não há dias “maus” a bordo: só há dias “menos bons”... É indesmentível, incontestável, que passar sete dias à bolina com 25 ou 30 nós de vento pode, à primeira vista, parecer desagradável: qualquer movimento é uma subida, cozinhar um sacrifício, ir à casa de banho o equivalente a três horas no ginásio com um instrutor sádico. Ler é impossível, o barco está desarrumado porque tudo cai, sobretudo as matérias oleaginosas como o azeite ou peganhentas como os ovos – os quais, se não forem limpos, deixam um traço olfactivo da sua presença nos fundos -, e se estamos numa regata temos de ir dormir para o outro lado cada vez que viramos de bordo. O barco bate nas vagas, e, como um casco não passa de uma enorme caixa de ressonância, faz um barulho que nos suscita muitas perguntas sobre a competência dos arquitectos que o desenharam e dos operários que o construiram.

Mas isso é só à primeira vista... se fosse assim tão desagradável, que nos levaria a repetir já amanhã, a tudo largar, se preciso fôr, para lá voltar agora, já? Será aquela meia-dúzia de horas que passamos, cada dois anos, com vento de força 3 a um largo folgado, spi em cima, o barco a deixar-se governar com dois dedos, a mulher por quem estamos apaixonados ao leme e com um sorriso que parece uma porção da linha do equador; ou aquela noite, numa latitude baixa, em que a lua nasceu cheia, parecia um holofote a 50 metros – o homem do leme chamou-me, pensando tratar-se de um navio; ou a passagem do estreito de Gibraltar, com força 6, a fazer gincana entre os cargueiros, spi em cima e o barco (“Isichia”, um Gibsea de 35’) a saltar de vaga em vaga como um cabrito que uma vez vi nos Alpes saltar de rocha em rocha; ou o whisky do fim do dia, quando navegamos para leste e o sol se põe na popa, e estamos sozinhos a bordo e temos a noção de que somos o centro de uma “imensidão sem centro”, como lhe chama o poeta espanhol Gabriel Celaya; ou chegar à terra ao princípio da noite – se fôr uma cidade importante o clarão confunde-se com o pôr-do-sol, e sabemos que no bar haverá certamente alguém que encontrámos noutro porto, noutro barco, noutro mundo.

Talvez seja isso, ou talvez simplesmente os dias “maus” sejam bons: porque esforçar-se, resistir, “never let go, never” pode ser uma fonte de prazer - a posteriori, certo. Como escrever: quem é que dizia “eu não gosto de escrever, mas gosto de ter escrito”?

É bom estar no mar para uma regata de duas horas como para uma travessia de três semanas; é bom estar num barco grande e confortável como num pequeno e lento (o maior conforto de um barco é a velocidade...); é tão bom amar num barco como estar sozinho; navegar com uma tripulação bem treinada ou ter que ensinar mesmo os gestos mais elementares; é bom comer um peixe que acabou de se pescar – e que se matou com um pouco de vodka – ou abrir uma lata de qualquer coisa para comer a correr; é bom fazer um barco andar com vento fraco ou controlá-lo quando o vento sopra; é bom chegar a um porto e é bom dele sair (se bem que por vezes tanto um como outro possam ser dificeis); é bom passar três dias num porto do c... da Irlanda à espera que o nevoeiro nos permita sair como é atravessar de uma ilha das Caraíbas para outra. É bom receber notícias de um amigo que vive no Sul da Patagónia e no dia seguinte falar com outro que navega no lago Léman.


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