2004-02-05
Ao sabor das velas
Hoje não me apetece escrever. Tentei, em vão, procurar nestas paredes desarrumadas, algo que merecesse a pena ser abordado, mas hoje não me apetece mesmo nada escrever. A casa é a mesma, as pessoas são as mesmas, o trabalho é o mesmo. O pequeno almoço de hoje foi igual ao de ontem e as calças que escolhi já as tinha usado uma vez esta semana. Há dias em que nos sentimos assim: apertados dentro de nós e sem vontade de sair desta sensaboria.
Nestas alturas em que nada sucede e a vida parece parada, os dias demoram-se e as noites são compridas. Quando o corpo se esquece de si mesmo, acomodado e ausente, o pensamento dispara num conjunto de associações que nem sempre são as melhores. Sinto Medo. As dúvidas parecem não ter fim e a saudade – não sei bem de quê - não cessa. O tempo deixa de ser apenas teempo e as palavras, essas, nem sequer são só palavras. Aqui, há tristeza em cada suspiro e querer em cada olhar. Mas é um querer fraco, sem manifestação exterior. Um querer com outros olhos porque estes nem conseguem fixar o que querem: perdem-se em amplas superfícies, sem nunca concluir a sua procura.
Nestes momentos não há memória que não seja relembrada. A análise surge e com ela, o desespero. Chama-se a isto um outro tipo de tempo. Um tempo que arde e corrói. Um tempo que queima. Um tempo igual à chama de uma vela que arde consumindo.
Lembrei-me agora do tempo em que as velas eram todas de um branco-amarelado e ardiam nas igrejas ou em casa, quando a electricidade faltava. Eram mágicos os momentos em que a luz faltava e a família se reunia em um único compartimento da casa, ao sabor da chama de uma vela ou de um candeeiro. Naqueles momentos ficávamos mais próximos uns dos outros, falávamos mais baixo, sentíamos mais silêncio e escolhíamos melhor as palavras.
Hoje, nas igrejas, elas mantém a mesma forma, a mesma cor, o mesmo propósito. Cá fora, para além de terem ganhado outras formas, cores e propósitos, ganharam, também, outros aromas e, consequentemente, uma outra dimensão. Há, na chama das velas, estejam elas onde estiverem, uma certa quietude em movimento.
Nestes momentos de solidão forçada acende-se cá dentro uma chama qualquer, que arde, queimando-nos. A chama chama chama ... e a boca seca e não deixa que as palavras se soltem. Melhor assim! Seriam palavras de inquietude.
Mas hoje não me apetece escrever. Não me apetece ficar aqui a mastigar o mesmo sal de ontem. Apetece-me mentir, dizer aos que aqui estão que, lá fora, tenho o mundo à espera e que não me posso atrasar. Hoje a solidão não me eleva o espírito. Hoje não há nada para além da linha do horizonte.
Filomena Gonçalves
Hoje não me apetece escrever. Tentei, em vão, procurar nestas paredes desarrumadas, algo que merecesse a pena ser abordado, mas hoje não me apetece mesmo nada escrever. A casa é a mesma, as pessoas são as mesmas, o trabalho é o mesmo. O pequeno almoço de hoje foi igual ao de ontem e as calças que escolhi já as tinha usado uma vez esta semana. Há dias em que nos sentimos assim: apertados dentro de nós e sem vontade de sair desta sensaboria.
Nestas alturas em que nada sucede e a vida parece parada, os dias demoram-se e as noites são compridas. Quando o corpo se esquece de si mesmo, acomodado e ausente, o pensamento dispara num conjunto de associações que nem sempre são as melhores. Sinto Medo. As dúvidas parecem não ter fim e a saudade – não sei bem de quê - não cessa. O tempo deixa de ser apenas teempo e as palavras, essas, nem sequer são só palavras. Aqui, há tristeza em cada suspiro e querer em cada olhar. Mas é um querer fraco, sem manifestação exterior. Um querer com outros olhos porque estes nem conseguem fixar o que querem: perdem-se em amplas superfícies, sem nunca concluir a sua procura.
Nestes momentos não há memória que não seja relembrada. A análise surge e com ela, o desespero. Chama-se a isto um outro tipo de tempo. Um tempo que arde e corrói. Um tempo que queima. Um tempo igual à chama de uma vela que arde consumindo.
Lembrei-me agora do tempo em que as velas eram todas de um branco-amarelado e ardiam nas igrejas ou em casa, quando a electricidade faltava. Eram mágicos os momentos em que a luz faltava e a família se reunia em um único compartimento da casa, ao sabor da chama de uma vela ou de um candeeiro. Naqueles momentos ficávamos mais próximos uns dos outros, falávamos mais baixo, sentíamos mais silêncio e escolhíamos melhor as palavras.
Hoje, nas igrejas, elas mantém a mesma forma, a mesma cor, o mesmo propósito. Cá fora, para além de terem ganhado outras formas, cores e propósitos, ganharam, também, outros aromas e, consequentemente, uma outra dimensão. Há, na chama das velas, estejam elas onde estiverem, uma certa quietude em movimento.
Nestes momentos de solidão forçada acende-se cá dentro uma chama qualquer, que arde, queimando-nos. A chama chama chama ... e a boca seca e não deixa que as palavras se soltem. Melhor assim! Seriam palavras de inquietude.
Mas hoje não me apetece escrever. Não me apetece ficar aqui a mastigar o mesmo sal de ontem. Apetece-me mentir, dizer aos que aqui estão que, lá fora, tenho o mundo à espera e que não me posso atrasar. Hoje a solidão não me eleva o espírito. Hoje não há nada para além da linha do horizonte.
Filomena Gonçalves