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2004-02-05

 
Beatriz, 23:30


O medo invadiu o meu corpo com o arrastar dos minutos. Não que fosse verdadeiramente tarde, mas era muito mais tarde do que as horas que tínhamos combinado. Talvez a Joana tivesse razão e eu não soubesse encontrar o difícil equilíbrio entre ser um pai permissivo e um pai autoritário.

A Joana ? A ideia de lhe telefonar apareceu-me mal os ponteiros do relógio ultrapassaram as dez horas. Já tinham passado mais noventa minutos e a minha mão continuava esticada na direcção do telefone sem lhe ousar tocar... e se a Beatriz quisesse telefonar para casa a explicar o atraso e o telefone estivesse ocupado. Na verdade eu sabia que o que dominava esse meu impulso era o medo do que iria ouvir. Desde o divórcio que as poucas palavras trocadas entre mim e a Joana eram temperadas por pequenas picadas de alfinete, mas já imaginava as palavras amargas a formarem-se na boca dela – Eu bem a avisei que ter decidido ir morar contigo ia acabar mal, onde já se viu um pai deixar sair a filha que só tem catorze anos à noite com uns amigos.

Deixei-me cair da cadeira. Havia um outro medo que se sobrepunha de tal maneira a esse que as palavras dela seriam benvindas desde que chegassem depois da Beatriz. Imaginei a minha filha atropelada a sair da pizzaria, o derradeiro grito antes de tombar no asfalto... ou raptada, violada talvez, imagens assustadoras formaram-se na minha cabeça. Duas lágrimas escorreram-me pela cara e percebi como nunca conseguiria perceber a enormidade da dor de pais que viram os seus filhos desaparecerem raptados e levados para redes de pedofilia. Antes a morte... não isso, não!

Forcei-me a me controlar. Estava atrasada e era tudo. O jantar de despedida da amiga tinha-se prolongado, tinha conhecido um rapaz, sei lá, qualquer coisa. Também não era fácil para mim, a quando do divórcio Beatriz fora com a mãe, era uma criança de doze anos e agora que resolvera vir viver comigo era uma adolescente de catorze anos. O corpo ganhara forma e eu perdera aquela química que nos permitia comunicar sem palavras.

A minha garganta estava tão apertada que mal conseguia respirar, tinha de avisar a Joana, nunca lhe perdoaria se fosse ao contrário...


Estava atrasadíssima e mesmo assim hesitava em tocar à porta. Escutava já as palavras duras na boca do meu pai. As proibições para saídas futuras, a mesada cortada. A minha mãe já furiosa ao telefone pois de certeza que aqueles dois que nunca se entendiam, haveriam de unir esforços para me castigarem. Sentei-me nos degraus da entrada a mão teimosamente recolhida para não chegar à campainha.



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