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2004-02-14

 
Longe do olhar dos outros

Tempo branco, tempo de nenhuma paixão.
Desce ao âmago desta cela.
Debruça-te para o interior do meu vazio.
Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil.
Nenhum desejo — porque o desejo precisa de um rosto.
E no lugar daquele que partiu acende-se a noite. Pressente-se a morte.
Mas no fundo de mim carregas ao ombro uma chapa de aço, em forma de sol apagado.
O teu corpo fundiu no silêncio do meu.
Dormimos na espessura da poeira, e nela suspendemos o tempo.
Abandonamos a alma.
Esquecemo-nos.
Nada sentimos, nenhum acto se realiza.
Nenhuma alegria ou tristeza.
Apenas matéria, matéria deixada à voragem dos escombros e da ferrugem.
Agora podemos tocar, enlear, comprimir ou distender os corpos.
Construir formas com eles e deixá-los, assim, numa melancólica eternidade.
Longe do olhar dos outros, respiramos ao mesmo tempo - como uma só engrenagem, única e bela.
Resquício de memória que se apaga lentamente, sem que ninguém dê por isso.

Al Berto, in O Anjo Mudo


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