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2004-02-04

 

O PAULO

Nem sei o que senti naquele momento. Sei o que sinto agora. Sinto uma enorme tristeza embrulhada num fino tecido de raiva.

Esta tarde, antes de vir para casa, passei pelo supermercado porque precisava preencher o vazio dos armários da minha cozinha. Compras feitas, dirigi-me ao carro. Quando ia a colocar a chave na ignição sinto um ruido lento vindo do lado direito da rua.

Olhei e vi um homem cabisbaixo, sentado num muro, encostado ao vidro que separa quem compra de quem vê comprar. O homem desembrulhava sacos e embrulhava sacos.

Já me tinham falado do Paulo e do tempo em que se perdeu.

Conheci-o de quando vinha pedir à sua mãe - que então trabalhava comigo - uns trocos para ir ao café com os amigos. O Paulo era louro e tinha olhos azuis. O Paulo tinha muitos amigos e vestia-se muito bem. O Paulo tinha uma namorada que o amava. O Paulo tinha a mesma idade que eu.

Um dia o Paulo foi passar férias a Londres.

Meses depois regressou e vinha acompanhado de alguém mais forte que ele: a heroína. Nesse dia o Paulo causou estragos em casa. No dia seguinte perdeu os amigos e depois o emprego. Finalmente cortou as ténues relações com a família.

A Mãe envelheceu de uma só vez, reformou-se e o Paulo desapareceu.

Encontrei-o hoje, em frente ao supermercado. Mudo, sujo, de cabelo grande e barba há muito por fazer. Hoje o cabelo do Paulo já não é louro e não sei se os seus olhos continuam azuis ... apenas porque baixei os meus quando me percebi de que ia olhar na minha direção.

Tive medo que sentisse vergonha de si ... ou e mim, não sei.

Hoje o Paulo é um sem-abrigo e já não tem a mesma idade que eu.


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