2004-02-05
Participação especial do Blogue de Esquerda
M. de Medo
Desculpem. Este era para ser um texto longo e fundamentado sobre o medo. Era para ser. Não é. Não é mesmo. Desculpem. É outra coisa. Um esboço. Uma aproximação. Um amontoado informe de ideias informes. Outra coisa. Nem menor, nem menos importante para mim. Só outra coisa. Outra coisa. Se querem saber a verdade, acho que me assustei. Acho que tive medo. Medo do que poderia dizer. É isso. Tive medo dos disparates que se dizem assim, da boca para fora, mas que nos perseguem depois, como aves agoirentas, a vida inteira. Para falar do medo é preciso ir muito fundo, muito longe, lá onde já não resta nenhuma luz. Não me sinto capaz de uma tal viagem. Quero dizer, hoje. Quero dizer, agora. Fico por isso à superfície, nesta ténue superfície de gelo por onde seguimos, deslizando de olhos fechados. Cegos.
O medo. Só me lembro de dois. Os mais óbvios. O medo de nascer: aquele terror de estar dentro da mãe, protegido do mundo, escondido da essência turva das coisas verdadeiras, e depois entrar nesta realidade acesa que é a vida, o mais brutal e luminoso dos abismos. E depois, o medo da escuridão: esse espaço incerto onde se escondem os outros medos todos, acotovelando-se na sombra. O medo da escuridão, diz-se, pertence à infância. Mentira. Pertence a todas as idades do homem. Porque o escuro que tememos não é a ausência de luz, não é o lado mais secreto da noite. É a morte a descer sobre todas as coisas que não vemos; a morte deixando avisos, lembretes, ultimatos; a morte recordando-nos que o tempo não arrasta só os ponteiros dos relógios. Não. O tempo também passa, como um vento feroz e carregado de areia, sobre todas as pessoas, animais e coisas que um dia descobrimos, pasmados, serem os objectos do nosso amor.
José Mário Silva
M. de Medo
Desculpem. Este era para ser um texto longo e fundamentado sobre o medo. Era para ser. Não é. Não é mesmo. Desculpem. É outra coisa. Um esboço. Uma aproximação. Um amontoado informe de ideias informes. Outra coisa. Nem menor, nem menos importante para mim. Só outra coisa. Outra coisa. Se querem saber a verdade, acho que me assustei. Acho que tive medo. Medo do que poderia dizer. É isso. Tive medo dos disparates que se dizem assim, da boca para fora, mas que nos perseguem depois, como aves agoirentas, a vida inteira. Para falar do medo é preciso ir muito fundo, muito longe, lá onde já não resta nenhuma luz. Não me sinto capaz de uma tal viagem. Quero dizer, hoje. Quero dizer, agora. Fico por isso à superfície, nesta ténue superfície de gelo por onde seguimos, deslizando de olhos fechados. Cegos.
O medo. Só me lembro de dois. Os mais óbvios. O medo de nascer: aquele terror de estar dentro da mãe, protegido do mundo, escondido da essência turva das coisas verdadeiras, e depois entrar nesta realidade acesa que é a vida, o mais brutal e luminoso dos abismos. E depois, o medo da escuridão: esse espaço incerto onde se escondem os outros medos todos, acotovelando-se na sombra. O medo da escuridão, diz-se, pertence à infância. Mentira. Pertence a todas as idades do homem. Porque o escuro que tememos não é a ausência de luz, não é o lado mais secreto da noite. É a morte a descer sobre todas as coisas que não vemos; a morte deixando avisos, lembretes, ultimatos; a morte recordando-nos que o tempo não arrasta só os ponteiros dos relógios. Não. O tempo também passa, como um vento feroz e carregado de areia, sobre todas as pessoas, animais e coisas que um dia descobrimos, pasmados, serem os objectos do nosso amor.
José Mário Silva