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2004-04-11

 



Ensaio sobre a lucidez

Do livro

Bem ao estilo habitual de Saramago, este romance nasce duma impossibilidade, ou melhor, de uma enorme improbabilidade, que é não só a da maioria da população votar em branco, mas também de executar acções simultâneas sem aparente coordenação.

A primeira parte do livro é sublime, onde se vê o nervosismo crescente do governo face à serenidade da população. E onde o povo da capital age como um só e como uma personagem una. O governo é composto por diversas personalidades com constantes picardias, o que funciona verdadeiramente bem como contraponto.

Na sua escrita característica, Saramago estabelece, por vezes, dialogo directo com o leitor, facilitando a empatia, e dando mudanças de ritmo à narrativa. A segunda parte do livro, onde o mesmo se transforma numa sequela ilógica do Ensaio sobre a cegueira, a qualidade do mesmo decai. Mais na trama que na escrita, mas também nesta.

“O silêncio que se sucedeu a estas palavras demonstrou uma vez mais que o tempo não tem nada a ver com o que dizem os relógios, essas maquinetas feitas de rodas que não pensam e de molas que não sentem, desprovidas de um espírito que lhes permitiria imaginar que cinco insignificantes segundos escandidos, o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, haviam sido uma agónica tortura para um lado e um remanso de sublime para o outro.”


Da leitura política

Este é um livro de onde é impossível não retirar uma leitura politíca. E não se pense que é um livro de elogio ao voto em branco. Não. Se algo é elogiado neste livro é a celebre máxima do anarquismo – ordem sem coação. Na verdade o livro chega a retrar uma sociedade ideal, plena de entreajuda e solidariedade onde não é necessária a existência de forças da ordem ou de órgãos do estado.
É igualmente impossível não retirar algum paralelismo com a actual conjunta portuguesa, desde a composição do governo de coligação, à democarcia mole e pouco participativa ou ao aproveitamente político por parte dos diversos partidos onde o p.d.e. (partido da esquerda) também não é poupado ao ser o partido que mais se tenta aproveitar do maciço voto em branco.

“ Ao ministro da defesa, um civil que não havia ido à tropa, tinha sabido a pouco a declaração do estado de excepção, o que ele tinha querido era um estado de sitío a sério, dos autênticos, um estado de excepção na mais exacta acepção da palavra, duro.”


Do autor

José Saramago é indubitavelmente um excelente escritor e este livro, mesmo não sendo um dos de eleição da sua obra, vem mais uma vez comprovar isso mesmo. No entanto, vem também demonstrar alguma incoerência no seu percurso. O ataque feroz a certas instituições e a criação de um marketing absurdo relativamente à enorme polémica que o livro viria a ter.
Mesmo no próprio livro, o final (que não vou contar) é incoerente face a todo o rumo que a narrativa tinha tomado. Como se o autor tivesse tido medo de chegar ao final óbvio...

“Uivemos, disse o cão.”


Da polémica

A primeira conclusão que se chega ao ler o livro é que muitas criticas inflamadas feitas ao mesmo foram feitas por quem o não leu.
A polémica sobre a democraticidade do voto em branco que chegou a diversas personalidades ou até às sondagens do público, resulta muito mais de declarações feitas pelo autor numa lógica de marketing do que do livro propriamente dito.

“Passaram os dias, as dificuldades iam em crescendo contínuo, agravavam-se e multiplicavam-se, brotavam debaixo dos pés como tortulhos depois da chuva, mas a firmeza moral da população não parecia inclinada a rebaixar-se nem a renunciaràquilo que achavam justo e que expressara no voto, o simples direito a não seguir nenhuma opinião consensualmente estabelecida.”

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