2004-04-06
Os Poetas que Abril abriu #1
Abril de 74 - Entre muitas outras vitórias, conquistou-se a liberdade de expressão. Livros proibidos saltaram para as montras, poesias escondidas vieram à luz do dia.
E no meio da euforia, muitos foram os poemas escritos num só fôlego com as emoções à flor da pele. Vivia-se História e sob a forma de poemas ou de canções, com maturidade literária ou com certa dose de ingenuidade, a cultura saiu à rua trajada, também, de cravos vermelhos.
Os poemas e poetas que aqui se irão apresentando são uma pequena amostra e uma singela homenagem, de quem não teve de crescer sob o jugo da ditadura e da censura, a todos aqueles que de uma forma ou de outra, conquistaram a liberdade de expressão.
Naquele tempo, a Internet, ainda não existia, mas se existisse, por certo, estaria proibida em Portugal como hoje acontece em várias ditaduras por esse mundo fora.
As portas que Abril abriu
Era uma vez um país
Onde entre o mar e a guerra
Vivia o mais infeliz
Dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos e veredas
Lezírias e praias claras
Um povo se debruçava
Como um vime de tristeza
Sobre um rio onde mirava
A sua própria pobreza
(...)
Um povo que era levado
Para Angola nos porões
Um povo que era tratado
Como a arma dos patrões
Um povo que era obrigado
A matar por suas mãos
Sem saber que um bom soldado
Nunca fere os seus irmãos.
Ora passou-se porém
Que dentro de um povo escravo
Alguém que lhe queria bem
Um dia plantou um cravo.
(...)
Era já uma promessa
Era a força da razão
Do coração à cabeça
Da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
Homem novo capitão
Mas também tinha a seu lado
Muitos homens na prisão
(...)
Posta a semente do cravo
Começou a floração
Do capitão ao soldado
Do soldado ao capitão
(...)
Foi então que Abril abriu
As portas da claridade
E a nossa gente invadiu
A sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
Na madrugada serena
Um poeta que cantava
O povo é quem mais ordena
(...)
E idas vindas esperas
Encontros esquinas e praças
Não se pouparam as feras
Arrancaram-se as mordaças
E o povo saiu à rua
Com sete pedras na mão
E uma pedra de lua
No lugar do coração.
(...)
E em Lisboa capital
Dos novos mestres de Aviz
O povo de Portugal
Deu o poder a quem quis
(...)
E se esse poder um dia
O quiser roubar alguém
Não fica na burguesia
Volta à barriga mãe.
Volta à barriga da terra
Que em boa hora o pariu
Agora ninguém mais cerra
As portas que Abril abriu
(...)
Dai ao povo o que é do povo
Pois o mar não tem patrões
- Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
(...)
Foi este lado da história
Que os capitães descobriram
Que ficará na memória
Das naus que de Abril partiram
(...)
As naves que transportaram
O nosso abraço profundo
Aos povos que agora deram
Novos países ao mundo
(...)
De tudo o que Abril abriu
Ainda pouco se disse
Um menino que sorriu
Uma porta que se abrisse
Um fruto que se expandiu
Um pão que se repartisse
Um capitão que seguiu
O que a história lhe predisse
E entre vinhas e sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Um povo que se levantava
Sobre um rio de pobreza
A bandeira que ondulava
A sua própria grandeza !
De tudo o que Abril abriu
Ainda pouco se disse
E só nos faltava agora
Que este Abril não se cumprisse
Só nos faltava que os cães
Viessem ferrar o dente
Na carne dos capitães
Que se arriscaram na frente
(...)
E se esse poder um dia
O quiser roubar alguém
Não fica na burguesia
Volta à barriga da mãe !
Volta à barriga da terra
Que em boa hora o pariu
Agora ninguém mais cerra
As portas que Abril abriu !
Ary dos Santos
excertos de “As portas que Abril abriu”