2004-09-20
Rosas malditas
Duas gotas de orvalho caíram, desamparadas, de um beiral, de telhas vermelhas desbotadas pelo sol, algures na serra da Arrábida. Cortaram o espaço, bamboleando na aragem irregular, e acoitaram-se nas únicas duas rosas do jardim da casa, escorrendo, sorrateiramente, por entre as pétalas ainda de um vermelho indefinido. As rosas, húmidas da manhã, abriram-se prematuramente, mostrando um esplendor desfocado. Quando o sol despontou e começou a aquecer o coração da natureza, as outras plantas foram saindo do torpor da noite, buscando a luz coada pela neblina matinal. Estranharam a precocidade das rosas, mas limitaram-se a um gesto de aceno, com um leve movimento das folhas, de um verde-escuro raiado por tons em constante mutação.
Ao entardecer, já as rosas estavam exaustas. O homem que as mantinha debaixo de olho, como troféu para mais um aniversário de casamento, colheu-as, num golpe frio. Colocou-as sobre a mesa da cozinha e refastelou-se no sofá da sala, mergulhando na inutilidade do zaaping da outra janela, que serve de escape e de perversão impunes. Quando a mulher chegou, cansada do trabalho e das muitas canseiras da vida, as rosas tinham murchado, derramando as pétalas sobre a madeira envelhecida pelo tempo. Nem agradeceu, limitou-se a limpar a mesa para poder servir o jantar ao marido. Os espinhos, por vezes, reacendem as chamas, mas os das rosas acabadas não têm mais futuro.